31/10/2012

A Transmissão da Revelação Divina (CIC 74 a 100)

No artigo anterior, refletimos sobre a Revelação Divina. Agora veremos por quais caminhos esta Revelação foi transmitida ao longo dos anos e como nos é transmitida ainda hoje. O Catecismo da Igreja Católica no número 74 lembra-nos que Deus deseja que todos os homens sejam salvos e conheçam a Jesus verdadeiramente, por isso é necessário anunciar Jesus a todos os povos. (cf. CIC 74)


I. Tradição Apostólica:

Os Apóstolos foram verdadeiras testemunhas de tudo o que aconteceu com Jesus, é através deles, que conviveram com o Cristo, ouviram suas palavras, que viram seus milagres, que viram sua morte e ressurreição, é que temos conhecimento de tudo aquilo que foi revelado por Deus em Jesus. Os Apóstolos pregaram o Evangelho seguindo a ordem de Jesus de fazer “discípulos dele todos os povos”(cf. Mt 28, 16-20). No número 76 do Catecismo, vemos que obedecendo à ordem do Senhor, os Apóstolos anunciaram o Evangelho de duas maneiras: Oralmente e por escrito.

Os Apóstolos anunciavam o Evangelho principalmente pela forma oral. Ou seja, eles iam de lugar em lugar, de cidade em cidade contanto tudo aquilo que viveram e viram com Jesus, iluminados pelo Espírito Santo. Mas como não era possível estar em todo lugar eles começaram a anunciar também por escrito a Boa Notícia de Jesus. Em muitos casos, eram escritas cartas pra orientar as comunidades cristãs que estavam surgindo. Um grande exemplo disto são as cartas de São Paulo. Na realidade podemos perceber que Jesus não enviou os apóstolos para que escrevessem, mas para que pregassem o Evangelho.

Obs.: No número 76 o Catecismo fala sobre “Varões apostólicos”. Podemos aqui citar o exemplo de São Marcos, autor do segundo evangelho e que não era um dos 12 apóstolos. Ele era o hermeneuta (tradutor) de São Pedro, que falava aramaico. Pedro saía pregando o evangelho e Marcos traduzindo-o para o grego (Pedro era um pescador rude e não falava bem o grego). Marcos era um varão apostólico, conviveu com os apóstolos e evangelizava com eles.

Cabe-nos aqui observar uma coisa: A Bíblia é fruto da Tradição Apostólica, fruto dos ensinamentos dos Apóstolos, ensinamento que era feito verbalmente. Portanto, é preciso ter consciência que a Bíblia é Palavra de Deus (Veremos mais detalhadamente no próximo artigo do Catecismo), mas ela não contém toda a Palavra de Deus. Deus é infinito, e sua palavra é infinita (E a Palavra é o próprio Jesus: cf. Jo 1, 14-18). Por isso não pode estar toda contida em um livro. O Próprio Apóstolo São João, no final de seu Evangelho nos diz que “Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se todas elas fossem escritas uma por uma, creio que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que seria preciso escrever.”– Jo 21, 25.

Portanto, além da Bíblia, temos uma outra fonte de conhecimento de Jesus Cristo: A Tradição dos Apóstolos, que deu origem a Bíblia e foi transmitida durante séculos pela Igreja. Para nós Católicos é claro: a Bíblia não é o único meio de conhecer o que Jesus nos revelou. Pois bem, agora veremos que a Igreja tem a missão de continuar anunciando aquilo que foi transmitido pelos Apóstolos. Vejamos o que nos diz o Catecismo repetindo as palavras do Concílio Vaticano II:

77. «Para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os bispos como seus sucessores, "entregando-lhes o seu próprio ofício de magistério"». Com efeito, «a pregação apostólica, que se exprime de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se, por uma sucessão ininterrupta, até à consumação dos tempos».

A Igreja continua a missão dos Apóstolos, anuncia o Cristo de geração em geração, seguindo tudo aquilo que recebeu dos Apóstolos, seja pela Tradição oral, seja pela Bíblia. Podemos ver isto com clareza nos escritos antigos dos primeiros séculos do cristianismo.

A Revelação aconteceu pelo mistério da encarnação (O Filho de Deus que se fez homem). Logo, a revelação é transmitida pela continuidade do fenômeno da encarnação. A continuidade do mistério da encarnação ao longo dos séculos chama-se: IGREJA! A igreja é o próprio Deus que se fez carne e que vive ao longo da história. Podemos ver isto claramente quando Saulo (Paulo) perseguia a Igreja no tempo dos primeiros cristãos e Jesus perguntou a Ele: Saulo, Saulo porque ME persegues? (cf. At 9, 4-5).


II. A Relação entre a Tradição e a Sagrada Escritura

É importante observarmos a relação de unidade entre a Sagrada Escritura (que habitualmente chamamos apenas de Bíblia) e a Tradição. Tanto uma quanto a outra possuem a mesma fonte: A Inspiração Divina e a pregação dos Apóstolos. O Catecismo lembra-nos que “formam de certo modo um só todo e tendem para o mesmo fim”.

Entretanto, é necessário salientar que são modalidades diferentes de transmissão da Revelação Divina (cf. CIC 81-82). Enquanto a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus escrita sob a ação do Espírito Santo, a Tradição transmite integralmente a Palavra de Deus que foi anunciada pelos Apóstolos. O Catecismo vai ainda mais longe:

82. Daí resulta que a Igreja, a quem está confiada a transmissão e interpretação da Revelação, «não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência».

Concluímos então que não podemos desprezar nem a Bíblia nem a Tradição. Esta questão nos diferença do pensamento protestante da "Sola Scriptura” – ou seja: só as escrituras. Os protestantes têm a Bíblia como único meio de conhecer a Deus, desvalorizando a Tradição.  

A heresia protestante é principalmente um problema de eclesiologia. Para os protestantes Jesus não deixou Igreja nenhuma, para eles qualquer pastor pode fundar sua igreja e congregar o seu grupo. A verdadeira Igreja de Cristo para os protestantes é invisível, ela acontece no coração do indivíduo que crê. Para eles Igreja é fundação humana simplesmente. Nós católicos sabemos claramente que Igreja somos nós aqui neste mundo e além dele (Igreja Invisível: com os anjos e os santos).

Os protestantes ficam intrigados assim porque vêm que os membros da Igreja têm pecados. Houve principalmente na época de Martinho Lutero uma enorme crise moral no clero: vários padres, bispos e até papas não tinham uma reta conduta. Assim como hoje vemos infelizmente padres e pastores pedófilos, que perderam a fé e a moral, naquela época esta perda de valores morais cristãos chegou até mesmo nos mais altos escalões do clero. Houve um papa que escandalizou a todos e que chegou a ter 12 filhos (para Alexandre VI). Devemos ter claro que sempre vai haver erros porque todos nós somos pecadores. Mas a Igreja de Jesus é Santa porque a Igreja é o próprio Jesus, o Corpo de Cristo (cf. 1Cor 12, 27-28). Além disto, foi um dos doze escolhidos que traiu Jesus.

Com tudo isto as pessoas perderam a fé na Igreja, assim como Lutero. Se esqueceram que a Igreja é a continuação do mistério de Cristo. Se não acreditarmos que a Igreja é a continuação do mistério de Cristo, logicamente tudo o que fizermos enquanto Igreja será pura invenção humana.

Lutero arrumou um novo jeito de transmitir a fé. Para ele já que a Igreja não era confiável, havia outro caminho: confiar apenas no livro - a Bíblia, daí resulta o princípio da “Sola Scriptura”. Ou seja, um jeito de ir a Jesus sem precisar da Igreja. O problema é que historicamente vemos que esta teoria da Sola Scriptura não encontra embasamento suficiente. O fato fundamental é que A Bíblia não nos caiu do céu pronta para uso. Foi a Igreja Católica que organizou a Bíblia, discernido os que eram livros inspirados por Deus e os que não eram. Só cremos na Bíblia porque cremos na Igreja. Se a Igreja não é confiável, se ela não tem valor, como podemos acreditar na bíblia então?

Tradição Apostólica e tradições eclesiais:

Nesta parte do Catecismo, vemos uma distinção entre a Tradição (com “T” maiúsculo) e a tradição (com “t” minúsculo). A Tradição é a que vem dos Apóstolos inspirados pelo Espírito Santo, são os ensinamentos que recebemos deles e que a Igreja conserva e ensina ao longo dos anos. Lembra-nos o Catecismo que os primeiros cristãos não possuíam um Novo Testamento escrito e pronto, e que a Evangelização acontecia pela Tradição viva.

Já a tradição são aqueles costumes teológicos, disciplinares, litúrgicos que acabaram sendo perpetuados durante os anos com o passar dos séculos. Estes costumes que chamamos de tradição (com “t” minúsculo) nos ajudam a viver bem a Tradição (com T maiúsculo) que recebemos dos Apóstolos.

Por exemplo: A Tradição nos revela o mistério da Cruz e o que ela significa para nós cristãos: sabemos que foi através da cruz que fomos salvos por Jesus. Isto é uma grande verdade de fé. Acontece que temos o costume (que acabou se tornando uma prática litúrgica da Igreja) de traçarmos o sinal da cruz em nós. Isto é uma tradição eclesial, ou seja, um costume muito antigo (talvez do século IV) e nos ajuda a viver bem a Tradição Apostólica.


III. A interpretação do depósito da fé:

O “Depósito da fé”, ou seja, toda a fé que professamos deve ser conservada pela Igreja num todo. Isso quer dizer que cabe a todos nós a tarefa de conservar a fé que recebemos. Esta tarefa não se limita ao Papa, aos Bispos e aos padres, é também uma tarefa de todos os fiéis leigos. Isto deve criar em nós uma unidade. Afinal, somos católicos e por isso temos que ser também unidos na fé.

Embora seja uma tarefa de todos nós conservar a fé, a autoridade de interpretar a Palavra de Deus à luz da fé cabe ao chamado Magistério da Igreja, isto é: aos Bispos unidos ao Papa. Os bispos são sucessores dos Apóstolos e continuadores da sua missão. Esta missão é realizada em nome de Cristo (cf. CIC 85). Inclusive o próprio Jesus disse: “Quem vos ouve, a mim ouve” (Lc 10, 16). Além de enfatizar a autoridade do Magistério, o Catecismo lembra-nos que o Magistério não está acima da Palavra de Deus.

Quando o Catecismo retrata a interpretação autêntica da Bíblia, deseja enfatizar a autoridade que a Igreja tem através do magistério. Deve-se observar também que aqui se faz uma clara oposição ao conceito protestante calvinista de “Livre exame da Bíblia”. Devemos ter a consciência de que: Se cada pessoa pode ler a Bíblia e retirar dela sua própria verdade é sinal que estamos negando a Verdade fundamental que Cristo nos transmitiu, e com isto corremos o risco de não interpretar corretamente o que Jesus nos ensinou, fazendo valer apenas a nossa opinião. E então, onde ficou Jesus que é a própria verdade?

Os Dogmas da Fé

Começamos a falar aqui de um conceito bastante complicado para se explicar ao homem moderno. A palavra “Dogma” do grego, quer dizer simplesmente Ensinamento. É o ensinamento da Igreja, ou melhor, é o ensinamento de Deus através da Igreja. Quando falamos de algo dogmático, estamos falando de algo essencialmente positivo. Nós que temos um coração católico, ficamos felizes quando a Igreja se pronuncia e deixa clara uma verdade de fé.

88. O Magistério da Igreja faz pleno uso da autoridade que recebeu de Cristo quando define dogmas, isto é, quando propõe, dum modo que obriga*¹o povo cristão a uma adesão irrevogável de fé, verdades contidas na Revelação divina ou quando propõe, de modo definitivo, verdades que tenham com elas um nexo necessário.”

*¹ - Podemos nos perguntar diante desta definição de obrigação do Catecismo: Onde fica a liberdade religiosa? – continua inalterada! O magistério obriga aos cristãos católicos a seguirem os dogmas de fé. Ninguém é obrigado a ser católico, mas enquanto católico têm princípios a assumir, que os identificam como católico. Ex.: Uma pessoa quer fazer parte da torcida organizada do Vasco, e vai ao jogo vestido com a camisa do Flamengo. Esta pessoa pode se vestir como quiser, mas se quiser ser daquela torcida tem que respeitar algumas normas. Não pode pertencer às duas torcidas ao mesmo tempo.

A proclamação de um dogma enfatiza e esclarece os limites da fé católica. O dogma não é uma novidade de fé. É o esclarecimento da Igreja sobre uma verdade de fé, a Igreja torna definitiva uma questão de fé em torno da qual se gerou controvérsias. Ex.: Durante muitos anos não se duvidou da presença real de Jesus na Eucaristia, até que em determinado momento da história heresias começaram a aparecer contrariando esta verdade de fé. Foi só aí então, que a Igreja declarou o dogma. Ou seja, não definiu nada de novo, mas quis colocar uma normativa, um esclarecimento: A Igreja católica professa a sua fé em Jesus presente na Eucaristia. Em termos mais claros, o dogma é delimitador: Até aqui se é católico, passou daqui já não se é mais católico.

89. Existe uma ligação orgânica entre a nossa vida espiritual e os dogmas. Os dogmas são luzes no caminho da nossa fé: iluminam-no e tornam-no seguro. Por outro lado, se a nossa vida for reta, a nossa inteligência e nosso coração estarão abertos para acolher a luz dos dogmas da fé ”.

Sentido Comum da fé:

O Catecismo em seu número 91 afirma que: “Todos os fiéis participam da compreensão e da transmissão da verdade revelada” e mais a frente vai dizer que “O Conjunto dos fiéis... não pode enganar-se no ato de fé”. Tudo isto para dizer que existe um sentido comum em nossa fé inspirada pelo Espírito Santo.

E para concluir este artigo, percebemos que vamos crescendo na compreensão da fé. É fato que conservamos a fé que recebemos dos apóstolos, mas muitas vezes nossa compreensão e explicação desta fé são limitadas, vão crescendo aos poucos. Hoje temos mais condições de explicar algumas questões de fé do que os cristãos do primeiro século (embora saibamos que nossa fé é a mesma daquela que eles professaram).


Luan Carlos Oliveira
Ouro Preto - MG

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